madeira, mater materia
Interior da Villa Mairea, Alvar Aalto, 1937-39.
maio 2023
Os materiais de que são feitos os edifícios inserem-se em uma trama de significados que ultrapassam nossa memória pessoal, abarcando também um sentido histórico. Assim, a interpretação dada aos materiais e o sentido que cada um deles agrega à arquitetura como um todo integram construções coletivas que flutuam e se modificam em função da conjuntura cultural e histórica na qual se inserem.
Embora reconheçamos a oscilação do significado dos materiais, procuramos resgatar aqui o sentido atribuído à madeira por diversos arquitetos para, assim, identificar traços comuns que permitam compreender o modo como esse material foi empregado na arquitetura moderna, particularmente em sua vertente brasileira.
Cultura Material
Mas se é verdade que a matéria carrega conteúdo em si mesma, é preciso notar que este nos é transmitido lentamente. Para o arquiteto Alvar Aalto (in Pallasmaa, 2010, p. 38-39), enquanto a palavra produz efeito imediato no homem, os materiais necessitam de um longo processo para começarem a ter repercussão na cultura humana. O esforço de compreender o significado da madeira para a arquitetura moderna deve ocupar-se, portanto, de um espectro temporal amplo o bastante para que possamos decifrar o discurso imbuído nesse material.
Mesmo para arquitetos contemporâneos como Peter Zumthor, a tentativa de decifrar o efeito da madeira no espaço arquitetônico passa pelo interesse pela raiz da palavra que denota o material, sugerindo uma associação antiga − e por isso mesmo esclarecedora − entre palavras. Em um texto incluído em Pensar a Arquitetura, Zumthor (p. 56) conta o que lhe dissera um jovem colega: “Na minha língua mãe, o espanhol, (...) existe uma proximidade entre as palavras madeira, mãe e matéria: madera, madre, materia”.
Essa vizinhança linguística indica dois temas bastante explorados na arquitetura – em primeiro lugar, a ideia de que a madeira seria um material tão próximo ao ser humano que suscitaria uma sensação de acolhimento maternal; em segundo lugar, a associação da madeira ao primeiro material usado pelo homem para a construção, a matéria-mãe.
Madeira, Material Vivo
Em relação à primeira ideia, cabe citar uma bela imagem de que nos fala Alvar Aalto (in Pallasmaa, 2010, p. 40): para ele, a madeira é um material vivo formado por veios crescentes como a musculatura do homem. Frank Lloyd Wright, que também nutre especial interesse pelos materiais, assinala a intimidade humana despertada pela madeira e a descreve como como um material amável e gentil (Patterson, 1994, p. 11).
Embora a identificação do homem com a madeira possa em parte ser explicada pelo fato de que esta “nunca apresenta uma temperatura muito diferente da nossa” (Rasmussen in Gonçalves, 2009, p. 69), outro aspecto que talvez sugira essa aproximação é a sensibilidade com que a madeira sofre os efeitos do tempo.
Nesse sentido, vale lembrar que para Zumthor (2009, p. 24-26), seria justamente o envelhecimento dos materiais que revelaria “(...) a consciência do decorrer do tempo e uma sensibilidade para a vida humana (...)” − através do envelhecimento, a arquitetura seria “(...) confrontada com a sua exposição à vida. Se o seu corpo for suficientemente sensível, pode alcançar uma qualidade que assegura a realidade do passado”.
Biofilia
Essas ideias têm encontrado reflexos recentes no crescente interesse pelo conceito de biofilia. Criado pelo psicólogo social Erich Fromm, o termo originalmente referia-se ao 'amor à vida' que explicaria duas tendências fundamentais dos organismos vivos: a manutenção da vida diante de ameaças de morte e a integração positiva entre si (Zhong et al., 2021).
Este conceito foi adaptado para o campo disciplinar da arquitetura no início do século 21, passando a ser usado para fazer referência ao bem estar sensorial e emocional − por vezes dificilmente quantificáveis − que o contato humano com elementos de origem natural inseridos no ambiente construído pode despertar.
Muitas vezes a madeira, um material de origem vegetal em constante transformação, é associado ao universo conceitual da biofilia, sendo reportado que ambientes em madeira poderiam estar atrelados à redução de stress e maior bem estar.
Embora revisões de literatura científica tenham apontado que a ideia de que interagir com a natureza pode oferecer efeitos positivos na saúde e bem-estar parece estar razoavelmente bem fundamentada (Zhong et al., 2021), não há dúvida de que aspectos culturais e históricos têm influência na forma como os materiais são apreciados.
Parafraseando Aalto, há que se ter em conta construções culturais depuradas ao longo de largos períodos de tempo para de fato escutar ressoar o significado dos materiais.
Embora reconheçamos a oscilação do significado dos materiais, procuramos resgatar aqui o sentido atribuído à madeira por diversos arquitetos para, assim, identificar traços comuns que permitam compreender o modo como esse material foi empregado na arquitetura moderna, particularmente em sua vertente brasileira.
Cultura Material
Mas se é verdade que a matéria carrega conteúdo em si mesma, é preciso notar que este nos é transmitido lentamente. Para o arquiteto Alvar Aalto (in Pallasmaa, 2010, p. 38-39), enquanto a palavra produz efeito imediato no homem, os materiais necessitam de um longo processo para começarem a ter repercussão na cultura humana. O esforço de compreender o significado da madeira para a arquitetura moderna deve ocupar-se, portanto, de um espectro temporal amplo o bastante para que possamos decifrar o discurso imbuído nesse material.
Mesmo para arquitetos contemporâneos como Peter Zumthor, a tentativa de decifrar o efeito da madeira no espaço arquitetônico passa pelo interesse pela raiz da palavra que denota o material, sugerindo uma associação antiga − e por isso mesmo esclarecedora − entre palavras. Em um texto incluído em Pensar a Arquitetura, Zumthor (p. 56) conta o que lhe dissera um jovem colega: “Na minha língua mãe, o espanhol, (...) existe uma proximidade entre as palavras madeira, mãe e matéria: madera, madre, materia”.
Essa vizinhança linguística indica dois temas bastante explorados na arquitetura – em primeiro lugar, a ideia de que a madeira seria um material tão próximo ao ser humano que suscitaria uma sensação de acolhimento maternal; em segundo lugar, a associação da madeira ao primeiro material usado pelo homem para a construção, a matéria-mãe.
Madeira, Material Vivo
Em relação à primeira ideia, cabe citar uma bela imagem de que nos fala Alvar Aalto (in Pallasmaa, 2010, p. 40): para ele, a madeira é um material vivo formado por veios crescentes como a musculatura do homem. Frank Lloyd Wright, que também nutre especial interesse pelos materiais, assinala a intimidade humana despertada pela madeira e a descreve como como um material amável e gentil (Patterson, 1994, p. 11).
Embora a identificação do homem com a madeira possa em parte ser explicada pelo fato de que esta “nunca apresenta uma temperatura muito diferente da nossa” (Rasmussen in Gonçalves, 2009, p. 69), outro aspecto que talvez sugira essa aproximação é a sensibilidade com que a madeira sofre os efeitos do tempo.
Nesse sentido, vale lembrar que para Zumthor (2009, p. 24-26), seria justamente o envelhecimento dos materiais que revelaria “(...) a consciência do decorrer do tempo e uma sensibilidade para a vida humana (...)” − através do envelhecimento, a arquitetura seria “(...) confrontada com a sua exposição à vida. Se o seu corpo for suficientemente sensível, pode alcançar uma qualidade que assegura a realidade do passado”.
Biofilia
Essas ideias têm encontrado reflexos recentes no crescente interesse pelo conceito de biofilia. Criado pelo psicólogo social Erich Fromm, o termo originalmente referia-se ao 'amor à vida' que explicaria duas tendências fundamentais dos organismos vivos: a manutenção da vida diante de ameaças de morte e a integração positiva entre si (Zhong et al., 2021).
Este conceito foi adaptado para o campo disciplinar da arquitetura no início do século 21, passando a ser usado para fazer referência ao bem estar sensorial e emocional − por vezes dificilmente quantificáveis − que o contato humano com elementos de origem natural inseridos no ambiente construído pode despertar.
Muitas vezes a madeira, um material de origem vegetal em constante transformação, é associado ao universo conceitual da biofilia, sendo reportado que ambientes em madeira poderiam estar atrelados à redução de stress e maior bem estar.
Embora revisões de literatura científica tenham apontado que a ideia de que interagir com a natureza pode oferecer efeitos positivos na saúde e bem-estar parece estar razoavelmente bem fundamentada (Zhong et al., 2021), não há dúvida de que aspectos culturais e históricos têm influência na forma como os materiais são apreciados.
Parafraseando Aalto, há que se ter em conta construções culturais depuradas ao longo de largos períodos de tempo para de fato escutar ressoar o significado dos materiais.
autores
taís de moraes alves
referências
Gonçalves, J.M.C.M. (2009). Peter Zumthor: um estado de graça entre a tectônica e a poesia. Prova final de licenciamento em arquitetura apresentada ao Departamento de Arquitetura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.
Grinde B, Patil GG. Biophilia: does visual contact with nature impact on health and well-being? Int J Environ Res Public Health. 2009 Sep;6(9):2332-43. doi: 10.3390/ijerph6092332. Epub 2009 Aug 31. PMID: 19826546; PMCID: PMC2760412.
Pallasmaa, J. (ed.) (2010). Conversaciones con Alvar Aalto. Barcelona: Gustavo Gili.
Patterson, T.L. (1994). Frank Lloyd Wright and the meaning of materials. Nova Iorque: Van Nostrand Reinhold.
Zhong, W., Schröder, T., & Bekkering, J. J. (2021). Biophilic design in architecture and its contributions to health, well-being, and sustainability: A critical review. Frontiers of Architectural Research, 11(1), 114–141. https://doi.org/10.1016/j.foar.2021.07.006
Zumthor, P. (2009). Pensar a arquitetura. Barcelona: Gustavo Gili.
Grinde B, Patil GG. Biophilia: does visual contact with nature impact on health and well-being? Int J Environ Res Public Health. 2009 Sep;6(9):2332-43. doi: 10.3390/ijerph6092332. Epub 2009 Aug 31. PMID: 19826546; PMCID: PMC2760412.
Pallasmaa, J. (ed.) (2010). Conversaciones con Alvar Aalto. Barcelona: Gustavo Gili.
Patterson, T.L. (1994). Frank Lloyd Wright and the meaning of materials. Nova Iorque: Van Nostrand Reinhold.
Zhong, W., Schröder, T., & Bekkering, J. J. (2021). Biophilic design in architecture and its contributions to health, well-being, and sustainability: A critical review. Frontiers of Architectural Research, 11(1), 114–141. https://doi.org/10.1016/j.foar.2021.07.006
Zumthor, P. (2009). Pensar a arquitetura. Barcelona: Gustavo Gili.
fonte das imagens
Alcântara, D. (2011). Krajcberg: arte com estertor. Outras Palavras. https://outraspalavras.net/sem-categoria/krajcberg-arte-com-estertor/
Fernández-Galiano, L. (1998). The Human Factor: Celebration of Alvar Aalto’s Centenary. Arquitectura Viva. https://arquitecturaviva.com/articles/el-factor-humano
Fischer, A. (2016). Peter Zumthor. Afasia Archzine. https://afasiaarchzine.com/2018/10/peter-zumthor-60/
Sveiven, M. (2020). Clássicos da Arquitetura: Villa Mairea / Alvar Aalto. ArchDaily Brasil. https://www.archdaily.com.br/br/01-170811/classicos-da-arquitetura-villa-mairea-slash-alvar-aalto?ad_medium=gallery
Fernández-Galiano, L. (1998). The Human Factor: Celebration of Alvar Aalto’s Centenary. Arquitectura Viva. https://arquitecturaviva.com/articles/el-factor-humano
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